sexta-feira, 13 de junho de 2014

Contra o tempo

Em tempos de tanta correria, compromissos e agendas, viramos inimigos do tempo. Nunca quisemos tanto que os ponteiros do relógio fossem mais generosos conosco devido à quantidade de compromissos que firmamos na nossa rotina. A gente trabalha, estuda, comparece à aniversários, festas de família, da empresa, dos amigos, organiza a casa, faz orçamentos financeiros, cuida dos pais, dos filhos, do cônjuge... Duas horinhas a mais no dia resolveriam metade dos problemas.

Me sinto vitorioso no dia em que consigo cumprir todos os compromissos, ou pelo menos os mais importantes. Mas nem sempre foi assim. Quem me conhece sabe habita em mim a alma de um idoso e a energia de um reumático. Não que eu me orgulhe disso, mas cada um enfrenta a vida da maneira que lhe traga mais paz. Há quem se submeta a intervenções e cirurgias para aparentar uma eterna juventude, há quem trabalhe insanamente para esquecer dos problemas e há pessoas como eu que vão contra a pressa que o relógio impõe.

Ser idoso de alma me permite certos álibis. É não me importar com os padrões que a sociedade me impõe e não sentir a necessidade de me enquadrar neles. É saber dizer não a um amigo que me chama pra uma balada simplesmente porque não estou a fim de sair. É me respeitar mais do que respeitar os outros. É saber que tudo tem limite, inclusive meu corpo. É ver que o tempo passou e me orgulhar de tudo que aprendi até aqui.

É saber que só porque ainda não cheguei onde eu quis não quer dizer que não possa momentos de imensa felicidade. É saber a diferença entre dinheiro e valor, e que ambos não estão necessariamente associados.  É saber reconhecer um momento mágico e apreciar antes que ele acabe. É cantar alto enquanto dirijo e pouco me lixar para o motorista do carro ao lado que me observa com ares de deboche (quase sempre com uma ponta de inveja). É saber que estou mais sábio, mas mesmo assim não sei de nada.

É saber que as relações que estabeleço não são amarras e muito menos justificativas para não ser quem eu sou. É ter a clara noção de que a única pessoa que pode me fazer feliz sou eu mesmo. É me aceitar do jeito que sou e saber que quem anda comigo, vai me conhecer assim e me compreender assim. É não ter ideia fixa. É compreender que as palavras “nunca” ou “sempre” trazem uma responsabilidade que dificilmente serão cumpridas. É me conformar que tudo é efêmero, inclusive o tempo.


É ter a conformidade de passar os dias com calma, aceitando que a vida é um processo, não um produto. Se alguns encaram o passar do tempo como uma corrida em direção ao fim, eu apenas encaro como uma permanência plena no meio. Pois no fim, de verdade, só está quem já se sente lá.


segunda-feira, 9 de junho de 2014

Terapias

Uns pintam, outros fazem boxe, muitos choram, falam pelos cotovelos, há também os que exageram na bebida.  Cada um tem um jeito de colocar seus pensamentos em ordem e extravasar alegrias e tristezas. Pois eu dirijo. Acredito que a gente só se revela mesmo é atrás de um volante, com os pés afundados no acelerador e não vejo terapia melhor que colocar uma playlist condizente com seu estado de espírito e sair cantando enquanto pilota. Só não aconselho fazer isso em momentos de ira, pelo bem da sua integridade física e dos outros.

O principal efeito dessa transferência é ter nas mãos algo que você pode controlar, medir, descontar e, quem sabe, confrontar. Se sou capaz de pintar traços tão específicos e harmonizar uma tela, por que não fazer isso com meu coração? Se posso golpear tão forte um saco de areia que pesa, sei lá, 200kg, por quê não sou forte o suficiente para apaziguar minha ira? Se estou apto a controlar um veículo tão milimetricamente projetado e ainda sim está sujeito a desgastes, por que me não consigo lidar com minhas próprias fraquezas?

 Terapias são comportas que se abrem na represa de tudo que a gente pensa e sente. Se acumular demais, transborda. Transferir o sentimento para algo que se possa tocar serve como uma usina hidrelétrica, que gera energia para alimentar outras partes do que nos compõe. Pensamento preso incha. Lágrima contida afoga. Mágoa guardada contamina. Ideia não compartilhada definha e se mistura ao lixo não reciclável.

Certa vez vi uma entrevista da escritora/roteirista/apresentadora/multitarefa Fernanda Young em que ela revela que a ideia do seu programa Irritando Fernanda Young seria, na verdade, Irritando Fernanda Young No Trânsito. Segundo Alexandre Machado, seu marido e idealizador do programa, as pessoas só são elas mesmas enquanto estão dirigindo e Fernanda se transforma numa entidade à parte.


A questão é que, meios à parte, o que interessam não são os fins, mas as formas como chegamos a eles.  E por meio disso que muitos talentos são descobertos, muitos dons são explorados e muitos artistas criam suas obras primas que perpetuam ao longo dos anos. Quem diria que algo que faz você esquecer se transformaria em algo pelo qual você será lembrado?